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Home office, pandemia e a divisão sexual do trabalho

Mais de 7 milhões de brasileiros passaram a trabalhar em regime remoto durante a pandemia. O que acontece na vida das mulheres quando fronteiras entre trabalho e casa se diluem

 

Thais Magalhães Rosa, do Instituto Trabalho Decente, para a Brasil de Direitos

“Se eu estivesse no setor privado, acho que estaria dentre as demitidas”, desabafa Clara Marinho Pereira, servidora pública do Ministério da Economia. Para a profissional, esposa e mãe de duas crianças de 3 e 5 anos de idade, 24 horas não têm sido tempo suficiente para lidar com todas as responsabilidades acumuladas durante a crise da Covid-19. “Quando tudo isso veio para dentro de casa junto com a crise sanitária, eu tive uma super crise de ansiedade”. 

Antes do crescimento no número de casos e a implementação de medidas de proteção no Distrito Federal em março, os filhos de Clara passavam o dia na creche, permitindo que tanto ela quanto o marido trabalhassem fora em período integral. Agora, os dois estão entre os 7,9 milhões de brasileiros ocupados em regime de trabalho remoto — valor correspondente a quase 10% do total de ocupados, segundo os dados de setembro de 2020 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD). Porém, o trabalho remoto com o qual Clara costumava sonhar antes da pandemia se tornou pesadelo diante da dificuldade de conciliar trabalho, casa e crianças.

Com a creche suspensa, mas a carga horária de ambos inalterada, a matemática simplesmente não bate — por mais que eles se esforcem em compartilhar as atribuições. “Meu marido está muito acima da média na questão da divisão do trabalho doméstico. Se não fosse isso, eu tenho certeza que teria surtado”. Ainda assim, dados mostram que o chamado trabalho reprodutivo — o trabalho doméstico e de cuidados — continua recaindo desproporcionalmente em Clara e mulheres como ela. 

O número de mulheres no mercado de trabalho tradicional cresceu consideravelmente ao longo dos anos, porém elas continuam exercendo o trabalho reprodutivo de maneira desproporcional em relação aos homens. De acordo com dados da PNAD Contínua 2018, mulheres não-ocupadas dedicavam 23,8 horas a atividades domésticas e de cuidado por semana, enquanto homens na mesma situação apenas dedicavam 12 horas. A disparidade, porém, segue alarmante mesmo dentre mulheres e homens ocupados: aquelas atuantes no mercado de trabalho ainda assim dedicavam 18,5 horas semanais às atividades reprodutivas, enquanto eles dedicavam apenas 10,3 horas. Ou seja, trabalhando fora ou não, as mulheres costumam dedicar quase o dobro do tempo que os homens às responsabilidades de casa.

Mesmo quando as mulheres não executam as atividades domésticas de suas casas elas mesmas, por dedicação a atividades profissionais externas, muitas vezes essa responsabilidade é terceirizada para profissionais como empregadas domésticas, babás e cuidadoras — serviços também dominados por mulheres. No emprego doméstico remunerado, por exemplo, 80% das trabalhadoras no mundo são mulheres; no Brasil, 92%.

Baiana e casada com um mineiro, Clara nunca teve familiares em Brasília para ajudá-la com as crianças, dependendo sempre da oferta de serviços. Em um momento inicial da pandemia, Clara dispensou a empregada doméstica que empregava, mantendo o salário. “A gente dispensou e quase morreu. O trabalho, as crianças, a casa… era coisa demais para gerenciar”. Rapidamente, ela voltou a usufruir do serviço, mas com carga horária reduzida; leva e deixa a profissional em casa e cumpre com todas as recomendações de proteção. “Não existe decisão fácil nesta pandemia”, resume.

A ajuda de uma profissional, tão essencial para Clara, é um privilégio ao qual nem todos têm acesso na atual realidade brasileira. Pesquisas mostram que o perfil socioeconômico das pessoas ocupadas em home office nesta pandemia é de brancos, com alta escolaridade e bons salários. Segundo o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Econômicos (DIEESE), 66% dos trabalhadores remotos são não-negros, 74% têm ensino superior completo e 72% casa própria. Dentre os brasileiros com menores rendimentos (até 1 salário mínimo), apenas 4% estão trabalhando remotamente, enquanto a cifra sobe para 32% dentre aqueles que ganham acima de 3 salários mínimos. 

Mesmo com a ajuda parcial de uma funcionária, sobra serviço em casa para Clara e as crianças ainda exigem bastante, todos os dias. Entre fazer o almoço e cuidar delas, quando Clara se senta para trabalhar, sabe que precisa render muito no curto tempo que tem. Infelizmente, estressada, preocupada e sem dormir, é difícil focar. “Ainda por cima, você quer manter produtividade, né? Não quer ser considerada uma profissional menor. Eu acho que sou profundamente respeitada no meu trabalho, mas têm coisas que a gente internaliza: eu sou mulher, sou negra, sou mãe. Não sei o quanto esses atributos pesam no momento em que eu falho”. 

O home office da mãe e trabalhadora Clara Marinho


Clara diz que, tendo acesso ao serviço de creche, ainda consideraria 
home office no futuro — gosta da ideia de poder se dedicar mais aos filhos nessa fase da infância em que estão. Mas, sem os serviços, Clara não tem tempo nem disposição para tirar proveito da proximidade; e mesmo com eles, admite que ficaria na dúvida. “Eu sinto muita falta do ambiente presencial do trabalho. Eu gosto de conversar, de trocar ideia”. 

Dentre os possíveis formatos de trabalho remoto, o home office e o teletrabalho são termos semelhantes, mas que carregam algumas importantes diferenças. O teletrabalho é uma modalidade que já era reconhecida por lei no Brasil antes da pandemia e se trata de trabalho exercido majoritariamente fora do ambiente oficial de trabalho, podendo ser executado em qualquer lugar que não a empresa. Já o home office se trata de trabalho exercido em uma combinação de dentro e fora do ambiente corporativo — ou seja, o empregado pode trabalhar tanto no espaço físico da empresa, quanto fora dele. 

Apesar do regime de home office ainda não ter regulamentação dentro da lei, o Ministério Público do Trabalho (MPT) divulgou no mês de setembro diretrizes para a modalidade, devido ao grande aumento de profissionais nesse regime durante a pandemia. Em nota técnica, o MPT orienta a definição específica de responsabilidades, infraestrutura e reembolso de despesas relacionadas ao trabalho remoto por meio de contrato de trabalho aditivo por escrito, como é feito para a modalidade de teletrabalho. Os empregadores devem também observar parâmetros de ergonomia, implementar medidas que assegurem as pausas legais e o direito à desconexão e oferecer o apoio tecnológico, orientação técnica e capacitação necessária aos trabalhadores.

De qualquer modo, para Clara uma coisa é certa: para o home office funcionar, os limites entre a vida profissional e a pessoal teriam de ser mais bem delimitados do que têm sido no contexto da pandemia.

O setor invisível

“No home office, a fronteira entre a vida no trabalho e a vida pessoal se dilui. Durante a pandemia, isso coincide com uma demanda ainda maior por atividades de cuidado: existe uma suspensão de diversos serviços, por uma questão de segurança sanitária”, explica Marcia Vasconcelos, socióloga e especialista em temas relacionados à promoção da igualdade de gênero e raça.

Marcia explica que a dificuldade de conciliação das diversas demandas, como Clara tem vivenciado, é reflexo de um problema muito maior que a pandemia apenas agravou e escancarou: a divisão sexual do trabalho. “A questão é o desequilíbrio que existe na divisão de responsabilidades do que chamamos de trabalho reprodutivo. Existe todo um universo de atividades acontecendo dentro do espaço privado que histórica e culturalmente é considerado responsabilidade das mulheres”.

Dentre os temas que Marcia Vasconcelos investiga, o equilíbrio entre trabalho produtivo e reprodutivo é um dos seus maiores interesses.

Segundo a especialista, é impossível avançar na questão geral da desigualdade de gênero sem tratar primeiro da divisão sexual do trabalho e da desvalorização do trabalho reprodutivo, acrescentando que existem componentes de raça e classe importantes envolvidos. Os dados da OIT referentes à jornada de trabalho mostram que as disparidades são ainda maiores entre homens e mulheres quando a raça é considerada: mulheres negras gastam mais tempo que mulheres brancas em afazeres domésticos e totalizam 2,4 vezes mais horas com atividades reprodutivas semanais que a média masculina.

Segundo Marcia, uma importante questão a ser esclarecida é que as atividades de cuidados são, em primeiro lugar, um trabalho. “Ele pode ser remunerado ou não remunerado, mas é um trabalho. Deve ser entendido como um setor econômico fundamental para a existência e organização da sociedade. É um setor que contribui para a economia, para o PIB”. 

No caso de Clara: sem os serviços de cuidado, ela e o marido não seriam capazes de exercer suas atividades profissionais adequadamente. Seja remunerado — empregadas domésticas, creches, asilos, cuidadoras — ou não remunerado — as donas de casa ou todas aquelas que se sobrecarregam executando esses serviços em paralelo às suas carreiras — o trabalho de cuidado é o que garante que as pessoas tenham suas necessidades básicas atendidas para que estejam saudáveis e livres para exercer outras atividades profissionais. “É um trabalho majoritariamente executado por mulheres que é explorado, desvalorizado, invisibilizado, mas fundamental para manter a sociedade funcionando”, resume Marcia.

Marcia defende a necessidade de ações direcionadas, políticas públicas e programas específicos e concretos para lidar com a questão. “Estamos falando de manter a nossa sociedade funcionando. Não é uma questão individual, apenas; tem de ser abordado como uma questão coletiva”. Também ressalta a importância da expansão do debate sobre o assunto — nas escolas, empresas e em todos os demais lugares profissionais, educacionais, sociais e também na esfera privada.

Sobre o futuro, Marcia afirma que, com a lente de aumento que a pandemia colocou sobre o problema dos cuidados, o debate na mídia, na internet e a produção acadêmica vêm crescendo cada vez mais. Porém, “quando a gente fala de temas que estão na base da organização da sociedade, temos uma resistência muito grande à transformação”, adverte. A oportunidade e a necessidade de pensar novos modelos estão lançadas, mas serão aproveitadas?

Pai mitológico

Aloisio Pereira Neto não hesitou em compartilhar seu depoimento. O profissional, que tem trabalhado em home office desde o início da pandemia enquanto cuida das filhas gêmeas de 4 anos de idade, tem a esperança de que sua fala sirva de inspiração para que alguém mude sua postura. “Me chama muita atenção que alguns colegas enxerguem esse tipo de atividade [doméstica] como sendo algo merecedor de um troféu: olha, eu estou lavando um prato. Olha, eu estou varrendo a casa. Que tarefa hercúlea, não?”.

O fato é que, de tão raro na sociedade brasileira, o perfil de Aloisio como pai e marido realmente se assemelha a um ser mitológico. Advogado sindical e professor de Direito Administrativo e Direito Civil na Universidade Católica do Salvador (UCSal), dá aula de manhã, cuida da casa e das crianças à tarde e executa seus serviços de advocacia entre uma coisa e outra. Ele se vira para que, quando a mulher chegue em casa depois de um dia de trabalho cheio, a roupa esteja lavada, a casa esteja em ordem e as meninas de banho tomado. “Como minha esposa é da área da saúde e, por isso, segue trabalhando fora de segunda a sexta enquanto eu fico em casa, por que vou atribuir tarefas domésticas a ela que eu poderia fazer eu mesmo?”. 

Sobre a utopia do home office, Aloisio alerta: “isso é ótimo quando você não envolve tantas variáveis como, por exemplo, duas crianças pequenas”. Tarefas da escola, reunião remota com os coleguinhas… “Fora o ‘papai quero fazer xixi, papai quero fazer cocô, papai quero almoçar’. Enquanto isso, as demandas no trabalho aparecendo — você imagina, em determinado dia, que você resolveu tudo; dez horas da noite recebe um telefonema urgente. Isso, ao longo dos dias, das semanas, toma certa dimensão”. 

A jornada dupla ou até tripla de trabalho afeta qualquer pessoa, indiferente de gênero, de maneira desafiadora — Aloisio é prova disso. Principalmente durante o primeiro mês de home office, ele não conseguiu dormir direito. “Eu me via assistindo o sol nascer às 4 da manhã, sem dormir porque eu não sabia como ia dar conta daquelas três aulas que eu tinha que dar, como ia cumprir aqueles cinco prazos dos processos e todas as tarefas domésticas. Foi um turbilhão”. A questão da divisão sexual do trabalho surge quando, como explicado por Marcia, as estruturas sociais sistemática e desproporcionalmente impõem às mulheres essas responsabilidades, resultando em uma divisão do trabalho reprodutivo com enormes disparidades de gênero. Mesmo Aloisio não teve outra escolha se não contar com ajuda externa, mesmo que eventual. Uma empregada doméstica e uma funcionária da creche (momentaneamente fechada) se alternam dois dias da semana para acompanhar as crianças nas manhãs que Aloisio leciona. 

Apesar de acreditar que muitas atividades profissionais seguirão sendo efetuadas de forma remota mesmo após o fim da pandemia, ele aguarda ansiosamente o momento que poderá voltar para a sala de aula. “A troca de calor humano dentro da sala ainda é muito importante para mim e eu sinto que isso influencia positivamente na formação do conhecimento dos alunos”. 

Aloisio Pereira Neto é professor, advogado, marido e pai, com muito orgulho.

Sobre o período de isolamento, Aloisio tenta ver o lado positivo. “Eu cresci muito como ser humano, como integrante da minha família. Eu percebi que é perfeitamente possível manter a qualidade e compromisso com as tarefas profissionais em paralelo com a condição de pai, de companheiro, de parte constituinte da construção familiar”, diz. “Eu não gostaria de me resumir a proporcionar renda e deixar de enxergar que cuidar das minhas filhas e da nossa casa são também atribuições minhas”.

Artigo publicado originalmente em A dupla jornada no home office: trabalho de cuidados e profissional na pandemia

Você também pode encontrar esse conteúdo na Plataforma Brasil de Direitos.

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