
Foto: Acervo Movimento Leões do Norte
Em 2024, Pernambuco ocupou o 7º lugar entre os estados brasileiros com mais assassinatos de pessoas trans, somando oito mortes, segundo o dossiê da ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais). A violência contra a população LGBTQIA+ no estado atinge mais travestis e transexuais, que são alvos de agressões físicas, psicológicas, patrimoniais e domésticas, e têm a recorrente negação de direitos em serviços essenciais como escolas e postos de saúde.
Foi nesse cenário de violações no estado pernambucano que nasceu o aplicativo Rugido, uma iniciativa criada pelos coletivos LGBTQIA+ Leões do Norte e Sete Cores, em parceria com outras 45 organizações da Rede LGBT do Interior de Pernambuco. O projeto se concretizou com o apoio do Fundo Brasil de Direitos Humanos, com recurso financeiro e o fortalecimento da articulação entre os grupos.
O Rugido foi implementado em 2021, quando iniciou o projeto de divulgação. Desde que surgiu, já recebeu 160 denúncias. No primeiro ano, foram 47 notificações. Entre janeiro de 2023 e abril de 2025, as denúncias saltaram para 113, um aumento de 140% em casos de LGBTfobia. O objetivo do projeto é facilitar o registro das ocorrências, acolher vítimas e encaminhar os registros aos órgãos responsáveis.
O programa atua como ponte entre vítimas e o Estado, além de ser instrumento de produção de dados para cobrar respostas institucionais e políticas públicas. “A gente precisa estar qualificado, e ter dados confiáveis, para cobrar mudanças com as ferramentas certas”, afirma Rildo Veras, sociólogo e coordenador dos coletivos Leões do Norte e Sete Cores. Ele aponta que a subnotificação ainda é um dos maiores entraves para cobrar as autoridades competentes pela garantia de direitos. “Mesmo diante de tantos casos, poucos são registrados oficialmente como crimes de ódio. Outro ponto importante é que nos municípios do interior ainda é forte a desconfiança da população no Poder Público, o que faz com que a maioria das pessoas não denunciem as violências sofridas.”
Como funciona no aplicativo
O Rugido foi criado para dar visibilidade a casos de LGBTfobia que, frequentemente, passam despercebidos pelos canais institucionais. Qualquer pessoa pode relatar um episódio de violência diretamente pelo site rugidolgbtqi.com.br ou por meio do app. É possível anexar fotos, vídeos e boletins de ocorrência.
Após o envio, a equipe do coletivo Leões do Norte, formada por sete pessoas, verifica as informações, depois entra em contato com a vítima o mais rápido possível para complementar os dados e faz o direcionamento ao Centro Municipal de Cidadania LGBTQIAPN+ do Recife, ao Centro Estadual de Combate às LGBTfobias ou ao Ministério Público, dependendo do local e da gravidade.
A ferramenta tem sido essencial para mapear os tipos de violência mais recorrentes. “Percebemos padrões bem definidos. Entre os principais relatos estão agressões físicas, violência psicológica e patrimonial, como a destruição de bens pessoais e o controle financeiro por parte de parceiros ou familiares”, conta Rildo. “Também recebemos frequentes denúncias de violência doméstica, com vítimas impedidas de deixar ambientes abusivos”.
Além do acolhimento, a equipe acompanha o desdobramento de cada caso, cobrando respostas dos órgãos públicos e pressionando por medidas concretas. “Garantir que essas denúncias não fiquem esquecidas é uma das nossas maiores responsabilidades”, afirma Veras.
Entre janeiro de 2023 e abril de 2025, quando o Rugido chegou a 113 denúncias de LGBTfobia, as organizações que o desenvolveram passaram a atuar com mais força junto ao poder público. Com os dados sistematizados, os grupos conseguiram identificar falhas no atendimento das instituições competentes e passaram a exigir respostas mais efetivas.
Outro resultado deste trabalho é que o movimento firmou uma parceria com a Defensoria Pública de Pernambuco para facilitar a retificação de nome e de gênero em certidões de nascimento de pessoas trans. Os centros de atendimento especializados do Recife e do estado também passaram a revisar suas práticas após receberem os relatórios gerados a partir do app.
De canal de escuta, o Rugido passou a ser visto como um instrumento de mobilização política. As informações reunidas alimentam dossiês, relatórios e ações de advocacy que fortalecem a cobrança por direitos. “A gente precisa estar qualificado, e ter dados confiáveis, para cobrar mudanças e mostrar que precisamos de políticas públicas”, diz Veras. “Para nós, o impacto do aplicativo vai além da tecnologia: é um projeto para transformar dor em política, denúncia em ação e invisibilidade em reparação”.
Rede de Resistência no interior de PE
Criado em 2001, o Movimento Leões do Norte se firmou como uma das principais organizações LGBTQIA+ do estado de Pernambuco. Com sede no Recife, o grupo atua na promoção da cidadania de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, intersexuais e outras expressões afetivo-sexuais, investindo na formação política de lideranças locais e no enfrentamento cotidiano à LGBTfobia. O trabalho se estende a todas as regiões do estado, com foco especial no interior.
Junto ao Grupo LGBT Sete Cores, da cidade de Pombos, o Leões do Norte impulsionou a criação da Rede LGBT do Interior de Pernambuco. A mobilização começou em 2010, com visitas e articulações presenciais, e segue crescendo. “Queremos alcançar todos os municípios do estado. A gente ainda tem muita andança pela frente”, diz Rildo Veras, coordenador da iniciativa. Os grupos organizam cursos de qualificação para pessoas trans, oficinas formativas e ações nas escolas públicas, sempre com o objetivo de garantir mais dignidade e respeito à população LGBTQIA+.
O Fundo Brasil ofereceu ao Movimento Leões do Norte suporte financeiro e metodológico, por meio do projeto “Tecer, resistir e enfrentar as LGBTfobias no interior pernambucano”, que deu vida ao aplicativo rugido. “Tínhamos um problema: as poucas denúncias. E uma ideia de como resolver: um aplicativo que facilitasse esse processo. O Fundo Brasil tornou esse sonho possível”, afirma Veras.
Mais do que possibilitar a criação da ferramenta, o apoio fortaleceu a própria Rede LGBT do Interior. “A partir do lançamento do projeto, os grupos se fortaleceram na denúncia de violações e na luta por cidadania. Passamos a acreditar mais no papel da nossa rede.”
Atualmente, o Fundo Brasil segue apoiando o grupo coordenado por Rildo Veras com um novo projeto focado na proteção de lideranças LGBTQIA+ que atuam nas áreas mais vulneráveis do estado. “Em tempos tão ameaçadores, esse suporte é vital para mantermos viva nossa mobilização”, diz o coordenador.
Leia também na Brasil de Direitos sobre a criação do aplicativo: Grupo cria aplicativo para denunciar LGBTfobia em Pernambuco