
Kamila Silva, gestora e produtora executiva da organização e Prethaís, diretora, articuladora e gestora da Casa N’Dengo. Foto: Acervo Casa N’Dengo
Dez anos depois da histórica Marcha das Mulheres Negras de 2015, Brasília se prepara para um novo encontro, que promete ecoar ainda mais forte. No próximo dia 25 de novembro, milhares de mulheres devem tomar novamente as ruas da Capital Federal para reafirmar a luta antirracista e feminista que mobiliza gerações.
Entre elas, estará a Casa N’dengo, uma organização que nasceu justamente daquele primeiro ato. A organização é apoiada pelo Brasil de Direitos Humanos, por meio do Edital Geral 2025 – Democracia e Direitos: Construindo o Futuro com Justiça e Igualdade.
O apoio foi decisivo para que o coletivo desse um passo sonhado há anos: a formalização. “Durante muito tempo, a gente funcionou no freestyle”, conta Kamila Silva, gestora da Casa. “Fazíamos porque acreditávamos, mas sem as ferramentas para nos estruturarmos. O Fundo Brasil chegou com a oportunidade de respirar, aprender sobre gestão, dividir funções e planejar o futuro.”
Da Marcha de 2015 à criação da N’dengo
A Casa N’dengo é fruto direto da energia política e afetiva despertada pela primeira Marcha das Mulheres Negras. Em 2015, Kamila e Thaís (Pretaís), hoje codiretora e cofundadora da Casa, tinham pouco mais de 20 anos quando se viram cercadas por um mar de mulheres negras vindas de todo o país. “A marcha capturou a gente”, lembra Kamila. “Ver tantas mulheres pretas juntas, discutindo racismo e história, foi uma experiência transformadora. A partir dali, decidimos criar nossos próprios espaços, sem pedir licença.”
Sugiram primeiro as rodas, os saraus e as oficinas voltadas à cultura e ao ativismo de mulheres negras no Distrito Federal. O que começou como encontros informais virou um projeto contínuo de formação, arte e resistência. A Casa N’dengo hoje ocupa um espaço no território Sol Nascente, junto com outros coletivos como o Instituto Filhas da Terra, Casa do Hip Hop e outras, formando a rede Ecofavela.
O Fundo Brasil no fortalecimento da Casa
Por meio dos recursos recebidos pelo edital, o coletivo pôde iniciar uma etapa de reformas estruturais e fortalecimento institucional que redefinem o seu papel no território.

Ally Akin, que compõem a direção da Casa, e Prethaís. No centro está o filho deles, Malik Akin, “nosso talismã e futuro”. Foto: Acervo Casa N’Dengo
O projeto apoiado pelo Fundo Brasil, batizado “Casa N’dengo: ORIentação para Enfrentar o Racismo”, foi desenhado para fortalecer a capacidade de acolhimento e articulação da Casa, garantindo suporte contínuo a mulheres negras, trans, mães e egressas do sistema socioeducativo e prisional.
A formalização marcou a transição da Casa de um coletivo que atuava “no freestyle”, como define Kamila, para uma organização com bases sólidas, planejamento estratégico e reconhecimento social. O apoio se transformou em ferramenta concreta de sustentabilidade e reparação, fortalecendo uma casa que, há uma década, constrói política com afeto, ancestralidade e sonho coletivo.
“Durante muito tempo, a gente achava que gestão financeira era coisa de branco”, diz Kamila, com franqueza. “Hoje, entendemos que dominar esses instrumentos é parte da nossa autonomia. O Fundo Brasil foi fundamental por oferecer um recurso que dizia: se formem, se fortaleçam, aprendam.”
A Casa N’dengo também conseguiu organizar suas funções e consolidar uma equipe que atua de forma colaborativa. Kamila cuida da gestão; Rainara é responsável pela comunicação; Rafa, pela produção executiva e cultural; e Pretaís e Ally Akin dividem a direção artística e institucional. “Ainda estamos sobrecarregadas, mas agora sabemos onde queremos chegar. Nosso trabalho não é só artístico ou cultural. Ele é político”, afirma Kamila.
Arte, ancestralidade e cuidado
A ideia de “tecnologias ancestrais” é central no trabalho da Casa N’dengo. Está presente no projeto Ilis, voltado a espaços socioeducativos, onde as oficinas de escrita e música servem de ferramenta para discutir racismo e reconstruir identidades negras. E, também, em ações como a Roda Ubuntu e os Ciclos de Cuidado, criados para promover escuta, autocuidado e fortalecimento de vínculos entre mulheres em situação de vulnerabilidade.
O que a Casa N’dengo constrói vai além de eventos ou oficinas. É um esforço cotidiano para materializar o que as fundadoras chamam de “bem viver e reparação”. Princípios que atravessam as religiões de matriz africana e as lutas por justiça racial. “A Casa existe porque quando mulheres negras sonham, a gente sonha fazendo”, define Kamila. “A gente planta, colhe, transforma. O racismo tenta destruir, mas a gente refaz sonhos. Aqui, o bem viver é possível.”
Marcha de 2025: reencontro e continuidade

Prethaís; Laete de Jesus, mobilizadora e produtora cultural da Casa N’Dengo; Cleudes Pessoa, colaboradora e ativista política do DF; e Rafaela Patrício, produtora cultural da organização. Foto: Acervo Casa N’Dengo
A Marcha das Mulheres Negras de 2025 deve ser o ápice desse ciclo. Dez anos depois da primeira, a expectativa é que o evento reúna novamente milhares de mulheres em torno do tema “Bem viver e liberdade: por uma política de reparação”.
Para a Casa N’dengo, a data será também a celebração de uma década de atuação e resistência. “A marcha tem uma responsabilidade enorme de manter e renovar as políticas para o povo negro. A gente quer que ela aponte caminhos, que garanta direitos além dos governos de turno”, afirma Kamila.
Além de estar presente na comissão organizadora da Marcha, a Casa N’dengo prepara sua sede para servir como ponto de hospedagem e convivência para mulheres negras vindas de todo o país. O espaço será um lugar de descanso, trocas culturais e fortalecimento político durante o evento. “Queremos que ninguém precise ir embora correndo. Que esse encontro dure, que gere trocas reais”, reforça Kamila.
Formação política e novos horizontes
A preparação intensa para o evento se soma ao amadurecimento da organização. A parceria permitiu que o coletivo se reconhecesse como parte de uma rede nacional de enfrentamento ao racismo, conectando o local e o estrutural, a base e a política institucional. “A gente sempre fez por afeto, mas o Fundo Brasil trouxe estrutura, confiança e aprendizado. Foi um divisor de águas”, resume Kamila.
O futuro, segundo ela, passa por ampliar a formação política dentro e fora do Distrito Federal. “Queremos dialogar com o movimento hip hop, com os homens do nosso território, sobre reparação e autocuidado. E também retomar as formações sobre história preta, sobre quem são nossas mais velhas, nossas lideranças. A luta segue, mas a base é o afeto.”
Enquanto Brasília se organiza para receber novamente o mar de mulheres negras em 25 de novembro, a Casa N’dengo se firma como uma dessas casas que sustentam a luta com afeto, ancestralidade e estratégia, um espaço de resistência e construção de futuro.
O espaço, localizado no Sol Nascente, está sendo preparado para acolher mulheres de diferentes regiões do país que participarão da Marcha das Mulheres Negras de 2025, em Brasília.
“A gente quer que elas tenham onde ficar, descansar, trocar. Queremos que o espaço tenha a nossa cara, com o afeto e as tecnologias ancestrais que nos movem”, explica Kamila Silva.




























