
Foto: Acervo Coletiva Resistência Lésbica da Maré
No último mês de agosto, a Coletiva Resistência Lésbica da Maré celebrou a conquista de sua sede própria: a Casa Resistências. O espaço oferece acolhimento, cuidado e proteção a mulheres lésbicas, bissexuais e trans, fortalecendo sua autonomia, segurança e reconhecimento.
A compra do imóvel foi possível graças a doações individuais e parcerias internacionais, mas foi com o apoio do Fundo Brasil de Direitos Humanos, por meio do edital Enfrentando o Racismo a Partir da Base 2024, que o sonho saiu do papel. Para as integrantes, a conquista representa um avanço significativo na luta contra a lesbofobia nas favelas do Rio de Janeiro.
“Sabe o que significa a gente dizer que agora tem uma sede própria? É uma conquista coletiva, construída com muita luta e resistência”, afirma emocionada Dayanna Gusmão, coordenadora-geral da Coletiva.
O anúncio da quitação aconteceu em 29 de agosto, Dia da Visibilidade Lésbica, surpreendendo e emocionando as mulheres que frequentam o espaço. “Era uma preocupação constante: se teria aluguel para pagar no fim do mês. Poder dizer que a casa é nossa foi libertador para todas nós”, relembra Dayana. “Nós reunimos a equipe em uma sala, pouco antes de começar o evento aberto ao público, e anunciamos. Foi uma emoção sem fim. A gente quis que a alegria fosse potência. Não era só dizer ‘compramos a casa’, era gritar: ‘essa casa agora é nossa’”.
Para marcar a conquista e celebrar o mês da visibilidade, a Coletiva organizou 10 dias de atividades, entre 19 e 29 de agosto, com 18 ações em diferentes favelas do Rio e da Baixada Fluminense. Rodas de conversa, oficinas, torneios de totó e o tradicional “feijão amigo” reuniram mais de 200 pessoas, fortalecendo redes comunitárias e ampliando a visibilidade da causa lésbica.
Caminhos de luta e cuidado
A Casa Resistências é a primeira organização a oferecer acolhimento específico para lesbianidades em um contexto de favela. Criada em 2017, a partir de encontros entre amigas, a Coletiva se tornou referência no acolhimento de lésbicas em situação de vulnerabilidade no Complexo da Maré, um dos maiores conjuntos de favelas do Rio de Janeiro.
O território, onde vivem mais de 140 mil pessoas, é marcado por desigualdade social, racismo e ausência de políticas públicas. A violência policial já obrigou a Coletiva a suspender atividades diversas vezes. “O primeiro desafio é a gente ficar viva. Eu sempre digo isso porque é um território favelado. E, para além das forças policiais, há outras forças em disputa, que vivem em guerra. Estamos sempre numa corda bamba”, relata Dayana.
A lesbofobia territorial também se impôs como barreira. “Quando chegamos à casa, vizinhos diziam: ‘Não deixem suas filhas irem lá, porque é casa de sapatão’. A lesbofobia territorial é real e pesa muito”, afirma.
Apesar dos preconceitos, a força da Coletiva está enraizada na cultura da comunidade. “Na favela ninguém faz nada sozinho. A gente cresce com a tia que toma conta de 10, porque nossas mães trabalham, nossas mães são mães do corre. Crescemos na coletividade enquanto crianças e nos formamos enquanto ativistas na coletividade. A Casa Resistências também carrega essa coletividade”, explica Dayana.
O espaço acolhe até seis mulheres por vez, em estadias que podem durar até um ano. Recebe lésbicas, cis e trans em situação de violência, expulsas de casa ou em situação de rua, oferecendo moradia, alimentação, acompanhamento psicológico e inserção no mercado de trabalho. O modelo de gestão é centrado na autonomia. “Nosso acolhimento é radicalmente antimanicomial. Isso significa que todas as moradoras têm chave da casa. A chave é um símbolo de poder e aqui ninguém deve ser controlada. Todas são corresponsáveis pelo cuidado coletivo”, detalha Dayana.
Entre 2022 e 2025, a Coletiva ampliou seu alcance: mais de 180 mulheres foram acolhidas presencialmente, 80% delas negras, e outras 53 receberam atendimentos à distância, com suporte psicológico, cestas básicas e acompanhamento essencial.
Para Heloísa Melino, advogada e integrante da coordenação financeira, a sede própria fortaleceu a atuação: “A Casa Resistências sempre soube fazer um trabalho de acessibilidade, levando informação e direito de forma compreensível, sem abrir mão da alegria como potência. Ter uma sede própria transformou a casa em espaço seguro e referência no território da Maré para acolhimento psicossocial e jurídico.”
Formação e autonomia
Um dos pilares da Coletiva é a formação profissional. Cursos de bartender e tranças afro já abriram caminhos para geração de renda: algumas participantes foram contratadas em bares e hotéis, outras criaram coletivos autônomos de serviços. “Não existe dignidade sem dinheiro. A gente aposta na formação porque acredita que o trabalho é caminho para a autonomia”, resume Dayana.
Para Kimberly Veiga, psicóloga sanitarista e coordenadora de acolhimento, a sede própria trouxe segurança institucional: “Ter um espaço é garantia de permanência do nosso trabalho e nos permite construir novas atividades sem medo de ser retiradas a qualquer momento. É uma imensa alegria termos conquistado isso com a ajuda do Fundo Brasil. Agora conseguimos atuar com mais autonomia em nossos acolhimentos, cursos e ações diárias.”
A sustentabilidade financeira, no entanto, segue como desafio. Embora tenha formalizado seu CNPJ, a Coletiva ainda luta para manter uma equipe remunerada. “As meninas comem todo dia, a internet, a luz, tudo é gasto fixo. Nosso sonho é ter uma equipe dedicada integralmente à Casa Resistências”, projeta Dayana.
Para Jaqueline Paiva, coordenadora administrativa e moradora da Maré, a sede também aproximou a comunidade: “Hoje oferecemos cursos, atendimento jurídico e psicossocial, rodas de conversa e muito mais. Isso fortalece os vínculos com a vizinhança, que tem participado ativamente de nossos eventos. Ter uma sede é fundamental para proporcionar tudo isso.”
Em 2024, além dos acolhimentos presenciais e à distância, a Coletiva promoveu mais de 30 atividades públicas, impactando diretamente mais de 1.200 pessoas.
“Viramos adultas. Saímos do isoporzinho para ter um CNPJ e seis vidas sob nossa responsabilidade. Agora queremos expandir, acolhendo outras mulheridades, como mães solos e imigrantes, mas sempre erguendo essa casa pela energia sapatão”, resume Dayana.

Foto: Acervo Coletiva Resistência Lésbica da Maré
O apoio Fundo Brasil
O apoio do Fundo Brasil foi decisivo para o fortalecimento institucional da Coletiva Resistência Lésbica da Maré. Parte dos recursos do edital Enfrentando o Racismo a Partir da Base 2024 foi destinada à compra do imóvel, garantindo autonomia e estabilidade ao projeto.
“Esse edital foi uma fenda histórica. Nos permitiu não só ter a casa, mas fortalecer nossas ações de cuidado. Foi através dele que conseguimos acolher mulheres egressas do sistema prisional, jovens em semiliberdade e meninas em situação de extrema vulnerabilidade. Sem esse apoio, nada disso seria possível”, reforça Dayana.
Com a sede regularizada, a Coletiva planeja expandir cursos e viabilizar um segundo espaço voltado a atividades culturais, esportivas e artísticas, em parceria com coletivos de circo, dança e artes visuais. A meta política é clara: transformar a Casa Resistências em referência de cuidado e autonomia para lésbicas negras e periféricas.