
Integrantes da Associação dos Brigadistas Akwê Xerente. Foto: ABIX
O fogo, entre os Akwê Xerente, nunca foi inimigo. É ancestral. Faz parte da vida e da terra. É o que aquece, purifica, renova. Mas, em tempos de estiagens mais longas e ventos fora de época, esse mesmo fogo também pode destruir o que, antes, alimentava.
Foi dessa contradição, e da necessidade de cuidar deste elemento, que nasceu, em 2014, a Associação dos Brigadistas Akwê Xerente (Abix), no Tocantins. Ela surge para que o cuidado com o território não fosse apenas emergencial, mas contínuo, unindo o combate ao fogo, a educação ambiental, a coleta de lixo, o bem viver do povo e a valorização da cultura.
“Percebemos que o combate não podia ser só de seis meses, como recebíamos da Prevfogo. O território precisa de proteção o ano inteiro”, diz Pedro Paulo Xerente, cacique e fundador da associação.
O território a que ele se refere reúne mais de 100 aldeias e cerca de 5 mil pessoas, distribuídas por 183 mil hectares de Cerrado. Uma imensidão viva, mas pressionada por monoculturas, madeireiras, usinas e, muitas vezes, pela ausência do Estado. A ABIX está localizada em Tocantínia/TO.
A vida por ali mudou depois da construção da hidrelétrica de Lajeado, no início dos anos 2000, que alterou o curso do rio Tocantins. Mudaram também o clima e o tempo. “Há anos em que venta demais, em outros, nada. Os rios estão secando. As roças não produzem como antes. As queimadas aumentam. É o desequilíbrio se mostrando”, resume Ana Shelley Xerente, presidente da Abix.
Entre os Xerente, o fogo é também ferramenta de manejo, não de destruição. Usar o fogo “a favor” é prática antiga e precisa. “A gente queima quando a vegetação ainda está úmida. O fogo não corre, apaga sozinho. Assim criamos áreas que impedem grandes incêndios”, explica o cacique.
A brigada combina saberes tradicionais e tecnologia. Jovens indígenas aprendem a produzir mapas de combustível com imagens de satélite, identificando onde a vegetação está seca, onde há rio, onde o fogo pode se propagar. Com o mapa na mão e o conhecimento do território nos pés, decidem onde e quando o fogo deve passar. Assim como onde ele deve parar.
Essas queimas controladas formam mosaicos de proteção. Neles, o solo se renova, as árvores frutificam e os animais encontram refúgio. “O fogo mal-usado destrói. Mas o fogo bem usada salva”, diz Ana Shelley (Abix).
Fogo Sagrado: comunicação para proteger o território

Comunicadores indígenas na oficina sobre ferramentas de edição. Foto: ABIX
Em 2025, a associação deu um novo passo com o projeto “Fogo Sagrado”, apoiado pelo Raízes – Fundo de Justiça Climática para Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais, criado pelo Fundo Brasil de Direitos Humanos.
A iniciativa da associação recebeu apoio no edital Fortalecendo Soluções de Povos Indígenas, Comunidades Tradicionais e Trabalhadores (as) rumo à Justiça Climática e à Transição Justa e surge para enfrentar um desafio central: a comunicação dentro e fora do território.
“Durante muito tempo, sofremos com desinformação. Queremos que a nossa voz chegue às aldeias e ao mundo”, explica Pedro Paulo Xerente, fundador da Abix.
Com o apoio do Raízes, seis comunicadores indígenas estão sendo formados em produção de conteúdo, audiovisual e uso de ferramentas digitais. “Agora, o povo Xerente é quem conta a sua história. Produzimos vídeos, cards, informações que mostram o que realmente acontece aqui”, explica Andréa Lopes, técnica e parceira do projeto.
O foco é qualificar jovens para atuarem como multiplicadores, combatendo notícias falsas e fortalecendo a autonomia comunicacional das aldeias. “Preferimos formar poucos, mas com qualidade. Cada pessoa vai se tornar uma referência, capaz de traduzir temas complexos, como as mudanças climáticas, em uma linguagem simples e acessível”, diz Ana Shelley Xerente (Abix).
O objetivo é que cada aldeia tenha pessoas preparadas para prevenir e manejar incêndios, sempre respeitando os ciclos naturais do Cerrado. “Não queremos só apagar o fogo. Queremos ensinar o porquê ele acontece e como podemos conviver com ele”, explica Andrea Lopes, que colabora na ABIX como Gestora de Projetos e Captação de Recursos.

Mulheres brigadistas voluntárias do Povo Xerente. Foto: ABIX
As mulheres e o equilíbrio da aldeia
Em meio a todo o trabalho no território, a associação criou a Brigada Feminina Akwê Xerente se tornou símbolo de força e mudança. Formada em 2021, ela reúne 29 mulheres indígenas voluntárias, que atuam principalmente com educação ambiental. “A mulher é quem ensina as crianças, quem conversa com as famílias. Temos paciência e cuidado para transformar o olhar da comunidade sobre o fogo”, explica Ana Shelley Xerente, presidente da associação.
As brigadistas percorrem aldeias, escolas e roças, ensinando sobre o “fogo no tempo certo”, recolhendo sementes e cultivando mudas no viveiro comunitário. Fazem tudo isso sem remuneração, pelo bem do povo mesmo. “Trabalhar voluntário não é fácil. Mas a gente se doa pelo território, pelas nossas famílias, pela vida”, diz Ana Shelley.
O protagonismo feminino, porém, ainda enfrenta resistências culturais. “Há quem ache que apagar fogo não é trabalho de mulher”, conta o cacique Pedro Paulo. “Por isso, vamos com cautela, mostrando com exemplos a força delas. Elas provam que cuidam do território com sabedoria e coragem. O importante é avançar sem romper com a tradição, respeitando o nosso modo de ser.”
Essa inserção gradual das mulheres nas ações ambientais tem inspirado outras comunidades indígenas da região. “As lideranças veem que as mulheres estão se mobilizando. Isso motiva os homens também. É um processo pedagógico e transformador”, afirma o cacique.
Elas participam do planejamento das queimas, do monitoramento do território e das atividades de educação ambiental. Também lideram projetos de coleta de sementes, hortas comunitárias e ações voltadas à soberania alimentar.
“A mulher tem uma força diferente. A gente cuida da roça, da casa, dos filhos e, também, da terra. Quando o fogo vem, é o nosso olhar que pensa onde ele pode chegar e o que precisa ser protegido primeiro”, conta a presidente da associação

Brigada Feminina Xerente. Foto: ABIX
Ana Shelley, que se tornou brigadista voluntária em 2021 e assumiu a presidência da associação em março de 2024, coordena atualmente 21 homens. Ela ressaltou que a dedicação é fundamental.
Esse papel inspira meninas e fortalece a comunidade. “A proteção do território é também uma forma de garantir que nossas filhas tenham futuro. Elas precisam ver que têm voz, que podem liderar”, completa Ana Shelley.
A Associação dos Brigadistas Akwê Xerente também recebeu um Apoio Emergencial do Fundo Brasil, num dos períodos mais críticos de incêndios no território. O recurso foi essencial para garantir condições básicas de atuação das brigadas, como a manutenção de veículos, a compra de equipamentos de segurança, o reparo de poços de água e a aquisição de sopradores.
“O fogo não espera edital nem calendário. Quando ele vem, é preciso agir e o apoio do Fundo chegou na hora certa”, conta Ana Shelley Xerente. “Aqui a gente faz muito além do que está no papel. Seguimos firmes, cuidando da base, formando novas lideranças e mostrando que o fogo também pode ser proteção.”
Da aldeia à COP30

Mulheres brigadistas na oficina de plantio com as crianças. Foto: ABIX
Em 2024, representantes da Associação dos Brigadistas Akwê Xerente participaram da Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP), levando ao debate internacional a experiência do manejo integrado do fogo e a denúncia do racismo ambiental no Cerrado.
“Participar da COP foi importante para mostrar que o Cerrado existe e que ele está vivo por causa dos povos que o protegem”, afirma Pedro Paulo. “As políticas climáticas precisam ouvir quem está no território, quem sente o calor e a seca na pele.”
Em 2025, o grupo volta a participar do encontro global, reforçando que o conhecimento indígena é também tecnologia. Integrante da Articulação dos Povos Indígenas do Tocantins, Pedro Paulo vai levar a experiência da ABIX e da sua atuação na ARPIT – Articulação dos Povos Indígenas do Tocantins.
“Falamos sobre o que aprendemos observando o tempo, os ventos, os bichos. Isso é conhecimento. É tecnologia de cuidado”, diz o cacique.
A inclusão da temática da COP30 nas atividades da associação busca fortalecer o entendimento da comunidade sobre o impacto real das mudanças climáticas e conectar o contexto local às discussões globais. “A mudança climática é visível aqui. O rio seca, o vento muda, o tempo não é mais o mesmo”, reforça Pedro Paulo. “Mas seguimos ensinando o nosso povo a entender, reagir e cuidar. Porque o futuro só será possível se for também indígena.”




























