
Integrantes do Instituto Responsa
“Foi o dinheiro que mais me trouxe paz. Eu não ganhava muito, mas tinha a certeza de que ia voltar para casa, de que não corria mais o risco de viver à margem das oportunidades por escolhas que, na verdade, foram consequência das condições em que vivíamos”, relembra Karine Vieira. Mulher egressa do sistema prisional, hoje assistente social e fundadora do Instituto Responsa.
A história de Karine se mistura à missão de sua organização: criar condições reais de recomeço para pessoas que deixam o cárcere e enfrentam barreiras de preconceito e exclusão. Essa jornada conta com o apoio do Fundo Brasil de Direitos Humanos, no edital Porta de Saída, que financia iniciativas voltadas à reinserção social e à promoção de direitos.
O trabalho do Responsa mostra como a vida pode ser transformada quando existem oportunidades. Se a prisão carrega estigmas que tentam silenciar, a chance de reconstruir a trajetória devolve voz e dignidade.
Assim, a trajetória de Karine não é apenas individual, mas também coletiva. Ela traduz os caminhos de milhares de pessoas que, ao sair do sistema prisional, buscam uma chance de recomeçar em um mundo que ainda insiste em tratá-las como responsabilizadas para sempre.
Da vulnerabilidade ao propósito
Karine cresceu em contextos de vulnerabilidade social e pobreza. Foram 15 anos vivendo os riscos impostos pela exclusão e pela ausência de políticas públicas. Em 2008, decidiu mudar seu destino: concluiu o supletivo, prestou o Enem e conquistou uma bolsa integral para cursar Serviço Social.
O primeiro emprego formal veio logo depois. Era simples e mal remunerado, mas carregado de significado. “A renda era pouca, mas era lícita. Dormia tranquila, com a consciência de que podia cuidar da minha família e que, finalmente, tinha alternativas concretas de vida”, recorda.
Essa experiência transformou sua forma de ver o mundo. O trabalho, mesmo em condições desafiadoras, representou disciplina, estabilidade e uma nova visão de futuro. Mais do que o salário, trouxe a certeza de que a reintegração era possível.
Foi a partir dessa vivência que surgiu a convicção: se para ela o recomeço foi difícil, para tantas outras pessoas a chance sequer existia. Daí nasceu o desejo de criar algo maior, capaz de abrir caminhos e construir dignidade para aqueles que, como ela, já haviam sentido as marcas do cárcere.
O surgimento do Responsa

Participantes da formação Fênix, oferecida pelo Instituto Responsa
Em 2017, Karine fundou o Instituto Responsa, organização criada por quem conhece, de dentro, as barreiras impostas pelo encarceramento e pela desigualdade social. O objetivo era claro: apoiar pessoas egressas do sistema prisional a reconstruírem suas vidas com dignidade.
O Responsa oferece um conjunto de ações que vão além do acesso a empregos. São iniciativas de formação, acompanhamento psicossocial e oportunidades de geração de renda, desenhadas para responder às necessidades concretas dessa população.
A metodologia parte de uma escuta ativa, que reconhece a singularidade de cada história. “Não existe fórmula pronta. Cada pessoa traz consigo dores, sonhos e limitações. Nosso papel é apoiar para que descubram suas próprias possibilidades de transformação”, explica Karine.
Hoje, a organização se consolidou como referência no tema, mostrando que o recomeço não é um favor, mas um direito. O Responsa atua como ponte entre pessoas egressas, suas famílias e o mercado de trabalho, oferecendo as bases para que novas histórias possam ser escritas.
Metodologia e programas do Responsa
O trabalho do Responsa é estruturado em três pilares: formação profissional, acompanhamento psicossocial e geração de renda. Essa combinação permite que cada pessoa tenha não apenas acesso a oportunidades, mas também condições de sustentá-las a longo prazo.
Na formação, o instituto oferece cursos e oficinas que preparam para o mercado de trabalho, mas também para o fortalecimento pessoal. O objetivo é desenvolver competências que vão além da técnica: disciplina, autoconfiança e visão de futuro.
O apoio psicossocial é feito para enfrentar traumas, medos e inseguranças. O Responsa entende que a reinserção não depende apenas de um emprego, mas de condições emocionais e sociais para reconstruir vínculos e acreditar em si mesmo.
Por fim, a geração de renda aparece como resultado, mas também como ponto de partida. O acesso a um trabalho digno é, muitas vezes, o que permite quebrar o ciclo de reincidência. “Um emprego pode não mudar o mundo, mas muda a vida de uma família inteira”, resume Karine.
Histórias de impacto e números concretos
Desde sua criação, o Instituto Responsa já apoiou centenas de pessoas em São Paulo e em outras regiões. Cada trajetória é uma prova de que o recomeço é possível quando existem oportunidades reais.
Entre os beneficiados estão homens e mulheres que encontraram no Responsa a primeira chance de trabalho formal, o suporte para concluir os estudos ou simplesmente alguém disposto a acreditar em suas capacidades. Esses resultados se multiplicam em famílias que conseguem estabilidade e crianças que passam a sonhar com outros futuros.
Os números reforçam a dimensão do impacto: mais de 500 pessoas atendidas, dezenas inseridas no mercado formal de trabalho e centenas de atendimentos psicossociais realizados. Cada estatística representa um rosto, uma história que rompeu o ciclo da exclusão.
“Quando alguém que já foi condenado recebe uma nova oportunidade, toda a sociedade ganha”, defende Karine.
O contexto do cárcere no Brasil
A realidade do sistema prisional brasileiro ajuda a explicar a importância do trabalho do Responsa. O Brasil possui a terceira maior população carcerária do mundo, com mais de 830 mil pessoas privadas de liberdade, segundo dados recentes do Conselho Nacional de Justiça.
Entre os egressos, a situação é ainda mais desafiadora: estima-se que mais de 70% não conseguem emprego formal após deixarem o cárcere. O preconceito e a falta de políticas públicas dificultam a reinserção e alimentam ciclos de reincidência.
Essa exclusão tem cor e classe social. A maioria da população carcerária é formada por pessoas negras e pobres, reflexo direto do racismo estrutural e das desigualdades históricas do país. Sem apoio, a saída da prisão costuma significar apenas uma mudança de cenário, sem alterar as condições que levaram ao encarceramento.
É nesse contexto que iniciativas como o Instituto Responsa se tornam fundamentais: porque atuam onde o Estado não chega, oferecendo o suporte necessário para que o recomeço seja uma possibilidade real, e não apenas uma promessa distante.
Porta de Saída e Fundo Brasil

Participantes da formação Fênix, oferecida pelo Instituto Responsa
O trabalho do Responsa ganhou força com o apoio do Fundo Brasil de Direitos Humanos, por meio do edital Porta de Saída.
O edital é pioneiro ao direcionar recursos especificamente para projetos voltados à reinserção de egressos, reconhecendo que esse público é historicamente invisibilizado nas políticas sociais do país. Ao oferecer apoio técnico e financeiro, o Porta de Saída amplia a capacidade das organizações de criar soluções inovadoras e replicáveis.
“É graças a esse apoio que conseguimos rever metodologias, monitorar indicadores e ampliar a incidência pública”, diz Karine.
A Capacitação Fênix é um dos principais programas do Instituto Responsa, pensada como um workshop introdutório que prepara pessoas egressas do sistema prisional para o mercado de trabalho.
A atividade inclui orientações sobre empregabilidade, simulações de entrevistas, rodas de conversa e dinâmicas que estimulam a autoconfiança e a capacidade de se apresentar em novas oportunidades. Como etapa que conecta o atendimento social inicial ao encaminhamento para vagas de trabalho, a Fênix simboliza o recomeço.
Criada em 2018 com o primeiro aporte financeiro recebido pelo Instituto e fortalecida pelo apoio do Fundo Brasil, ela permanece como uma das formações mais marcantes da organização, como explica Karine: “A Fênix simboliza o recomeço. É o momento em que cada pessoa pode se enxergar de novo como protagonista da própria história e acreditar que existe, sim, um caminho possível além das grades.”
Segundo ela, entre dezembro de 2024 e maio de 2025, foram alcançados 183 beneficiários diretos e indiretos, entre sobreviventes do cárcere, familiares e formadores envolvidos. A meta, até o fim do Projeto Fênix Ação, é formar 120 pessoas e inserir pelo menos 40% delas em empregos formais ou em outras modalidades de geração de renda.
“Os recursos viabilizaram também novas iniciativas, como as rodas de conversa sobre redução de danos, os programas Papo Responsa transmitidos na Rádio da Rua e no Spotify, passeios culturais e até a revisão metodológica que mira 2026”.