
Foto: Lyarra Soares/Acervo AMAR
A Aldeia Tsa’Amri Wawé, também chamada Três Reis Magos, está localizada no território indígena Parabubure, a cerca de 30 km de Campinápolis. Ali vivem 40 pessoas do povo Xavante, que mantêm viva a cultura e a floresta. Da medicina tradicional, das rezas, das sementes e do protagonismo jovem, nasce a força para restaurar a diversidade de vidas na região.
“A aldeia é o nosso centro de cura e de reconexão, orientado espiritualmente pelos ancestrais”, explica Betânia Souza de Frota. Aqui, a gente busca regenerar não apenas a saúde física e espiritual dos indivíduos, mas também restaurar o tecido cultural do nosso povo e o território em que vivemos”.
Com apoio do Fundo Brasil, a comunidade implementou um sistema agroflorestal para cultivar mais do que alimentos. O projeto planta justiça climática, soberania alimentar e esperança em meio a uma terra marcada pela devastação, provocada pela monocultura e pela pecuária.
Enquanto o Mato Grosso segue no topo do ranking dos estados que mais desmatam no país, o povo Xavante resiste e atua na direção oposta: a da preservação e da restauração. Segundo dados do Imazon, só em março de 2025, o estado foi responsável por cerca de 65 km² de floresta derrubada, o que representa 39% de todo o desmatamento registrado na Amazônia naquele mês.
É nesse mesmo território, prejudicado pela devastação, que o povo Xavante se mantém firme, cultivando práticas ancestrais de cuidado com a terra, numa luta diária pela sobrevivência não só de seu povo, mas também da floresta.
A agrofloresta de aproximadamente 4 mil metros quadrados é organizada pela Associação no Meio Ambiente Revolucionária — AMAR, criada pelos próprios indígenas Xavante. O projeto combina técnicas modernas com saberes tradicionais, e nasce como resposta concreta à crise ambiental e cultural que ameaça o bioma do Cerrado e a própria sobrevivência do povo Xavante.
“A floresta que estamos plantando é nossa farmácia, nosso alimento e, também, nossa reza. Cada muda que colocamos no chão é uma oração viva”, afirma Watsi Betânia, liderança espiritual da aldeia e assessora da AMAR.
Através da AMAR, os indígenas do local realizam projetos agroflorestais, educacionais e culturais, integrando a espiritualidade, a sustentabilidade e a educação indígena integrada.
Da terra sagrada nasce a cura
Cada muda colocada no chão é mais do que agricultura. Para o povo Xavante, o projeo representa resistência, é saber. O sistema agroflorestal de Tsa’Amri Wawé conta com nove linhas de frutíferas de 50 metros, onde foram plantadas espécies nativas como baru, mangaba, cagaita, buriti, araticum, jenipapo, gabiroba, sucuuba, bacaba, tucum e jatobá-do-cerrado. Intercaladas estão 90 bananeiras e 153 unidades de inhame, taioba ou abacaxi.
Há ainda 17 canteiros com arroz vermelho, feijão, abóbora, melancia, alface e couve. Ainda tem milho vermelho Xavante, banana, mandioca, feijão, cará, açaí, seriguela. Cada uma dessas plantas contribui para a nutrição da terra e das pessoas.

Foto: Lyarra Soares/Acervo AMAR
Além de alimentos, o território cultiva medicinas tradicionais, como o urucum sagrado (Bö), central em rituais e na pintura corporal. “Cada planta tem valor espiritual. Plantamos para comer, mas também para rezar e curar. Nossa floresta é nosso hospital, nosso templo e nossa escola”, diz Betânia.
O cultivo respeita os ciclos da natureza, garante diversidade e traz de volta a segurança alimentar. Cada uma dessas plantas contribui para a nutrição da terra e das pessoas. “Sem alimento suficiente, a comunidade se vê cada vez mais dependente de cestas básicas, alimentos ultraprocessados, que enfraquecem ainda mais os corpos e o espírito do nosso povo. Diante desse cenário, o retorno à alimentação tradicional surge como uma cura, uma reconexão.”
As chamadas linhas de serviço utilizam plantas como urucum, feijão-guandu, gliricídia, crotalária e braquiária para melhorar o solo, controlar pragas, fixar nitrogênio e manter a umidade. Ao podá-las, a terra recebe nutrientes. É um sistema vivo, autorregulado, que imita a floresta e promove fertilidade sem venenos.
A espiritualidade é o eixo de tudo. Na oca circular, os rituais com Wedepanhõ’õ (Ayahuasca) ajudam a juventude a se afastar do alcoolismo, resgatam sonhos e fortalecem a conexão com os ancestrais. “Aqui, a juventude canta, planta e estuda com orgulho. A cura é coletiva. A floresta cura. O canto cura. A água cura. E plantar também é rezar”, diz a assessora da AMAR.
A aldeia sofre com a falta de água potável. Existe apenas um poço semiartesiano, que não atende as necessidades das casas e roças. A água contaminada por agrotóxicos já causou tragédias, como a morte de um bebê recém-nascido.
Por isso, ainda dentro do projeto, o plano agora é perfurar um poço artesiano e construir um sistema de irrigação para a agrofloresta. Além disso, a organização pretende instalar banheiros ecológicos em todas as nove casas e um banheiro comunitário. “Sem água, não há vida. Nossa luta é pela dignidade e pela cura”, diz Betânia.
Para a garantia de novos plantios, as sementes são guardadas com cuidado pelas mulheres. Elas são das sementes e da continuidade. São trocadas entre aldeias para fortalecer outras comunidades. “Cada semente tem um nome e uma história. Elas são nossa herança. É com elas que vamos alimentar nossos filhos e proteger a floresta”, diz Betânia.
Juventude como semente para o futuro

Foto: Lyarra Soares/Acervo AMAR
Mais de 20 jovens participaram da construção coletiva da agrofloresta. Entre eles, Perfeito Tsererureme e Marta Ro’ó Praba se destacaram na articulação das tarefas. “A juventude é o pilar do nosso futuro. Temos poucos anciãos. Por isso, precisamos que nossos jovens aprendam, plantem e conduzam”, diz Betânia.
A aldeia já começou a escrever seu Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA). O documento é construído em assembleias, rodas de escuta e cerimônias. “Não queremos que alguém de fora diga como cuidar do nosso território. Queremos fazer do nosso jeito, com nossa língua e nossas prioridades”, afirma Betânia.
O plano ainda prevê escola indígena, extrativismo sustentável, valorização do artesanato, etnoturismo responsável e formação de lideranças jovens. A ideia é que os Xavante ocupem espaços de decisão e tenham autonomia para captar recursos e proteger seu território.
O apoio do Fundo Brasil representou um marco. Foi o primeiro projeto aprovado por edital na história da aldeia. “Eles nos escutaram com o coração. Não vieram impor, vieram caminhar junto. Para nós, são irmãos enviados pelos ancestrais”, diz Betânia, emocionada.
A equipe da AMAR viu na parceria uma possibilidade concreta de sonhar e realizar. “Plantamos juntos uma agrofloresta, mas também plantamos um modo de existir com dignidade. Queremos que outras aldeias também plantem seus sonhos”, completa.
O povo Xavante acredita que seu papel é proteger o céu, o mar e a floresta, a partir de raízes profundas, sabedoria antiga e coragem jovem. “Queremos uma aldeia sem fome, sem dor. Uma aldeia onde a criança possa brincar em segurança, onde a mulher tenha voz, onde o jovem tenha orgulho de ser xavante. Onde a floresta esteja em pé e o céu continue seguro”, finalizou Betânia.