
Foto: Acervo Rede Cuíra – Jovens Protagonistas dos Manguezais Amazônicos
A Rede Cuíra nasceu da inquietude de quem não aceita ver seu território ameaçado. Essa vontade está no nome, que surgiu da expressão popular “cuíra”, usada na Amazônia para traduzir aquela vontade imensa de agir. “Sabe quando você quer muito fazer algo, seja sair, se movimentar e não consegue ficar parado? Isso é cuíra. E nós somos assim”, explica Bruna Martins, coordenadora de projetos da organização.
Formada por jovens de comunidades extrativistas costeiras e marinhas do Pará, a Rede Cuíra – Jovens Protagonistas dos Manguezais Amazônicos atua na defesa de um dos maiores manguezais contínuos do planeta.
Além de proteger o território, busca manter vivas tradições culturais, fortalecer práticas sustentáveis e ocupar espaços de decisão política. “Se os povos da maré tiverem condições de viver com dignidade, podem ter certeza de que haverá clima saudável e recursos naturais preservados para o mundo inteiro”, observa Bruna.
A mobilização ganhou ainda mais força a partir do Raízes – Fundo de Justiça Climática para Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais, criado pelo Fundo Brasil de Direitos Humanos. Com recursos de apoio, nasceu o projeto Voltando às minhas raízes, que reúne jovens de 12 Reservas Extrativistas (Resex) e de uma Área de Proteção Ambiental (APA) no Pará. O objetivo é preparar novas lideranças para enfrentar a crise climática e cultural nos manguezais.
“Se não fosse o Fundo Brasil, não existiria a rede de juventude organizada nos manguezais amazônicos. Foi com esse recurso que conseguimos nos consolidar”, afirma Bruna. “Na Rede, a gente escreve um projeto dizendo que vai fazer aquilo, mas faz muito mais. A gente multiplica o recurso. O Fundo Brasil acreditou na gente e a gente devolve em dobro.”
Manguezais: riqueza ambiental e cultural
O litoral amazônico, formado pelos estados do Amapá, Pará e Maranhão, é reconhecido internacionalmente como uma área de grande importância ecológica e biológica. Essa região concentra mais de 80% dos manguezais do Brasil, o que equivale a mais de 11 mil quilômetros quadrados de florestas de mangue.

Foto: Acervo Rede Cuíra – Jovens Protagonistas dos Manguezais Amazônicos
No estado do Pará, onde os jovens da Rede Cuíra atuam, encontra-se uma das maiores extensões contínuas de manguezais preservados do planeta. Essas florestas exercem funções vitais: absorvem carbono, sustentam a pesca, protegem a costa, filtram a água e abrigam uma imensa diversidade de espécies.
Embora a Indonésia possua a maior área de manguezais do mundo, o litoral paraense se destaca por reunir um mosaico de áreas de conservação, como as reservas extrativistas marinhas. Somadas, elas representam mais de 360 mil hectares de territórios protegidos, onde vivem e trabalham aproximadamente 375 comunidades e 81 mil pessoas, em sua maioria populações afroindígenas que enfrentam situações de vulnerabilidade social.
“As reservas extrativistas marinhas, além de ser unidade de conservação, são um instrumento efetivo de mitigação e adaptação climática. Tentamos manter o legado de Chico Mendes”, afirmou Bruna. “Há séculos estamos protegendo os maiores bosques e o ecossistema, que segura ali. Se tem gente que está na linha de frente, nós estamos na linha da maré. A maré está subindo, os manguezais são críticos, importantes para a segurança climática”, explicou.
Segundo a jovem ativista, eventos como a COP 30 são oportunidades de visibilizar lutas locais e fortalecer redes de atuação. “A gente acredita que é uma oportunidade de fortalecer as nossas lutas e enfrentamentos. Os manguezais são incríveis, maravilhosos, abundantes, mas a vida de quem vive nesse manguezal, que sustenta e segura o clima do planeta não é nada fácil. Enfretamos a poluição por grandes empreendimentos, a exploração ilegal de recursos e a falta de políticas públicas efetivas”. Bruna não romantiza. “Precisamos lutar por dignidade e fazer uma abordagem baseada em direitos humanos acima de tudo”, destacou.
Juventude como elo entre gerações
O projeto “Voltando às minhas raízes” foi desenhado para formar 40 jovens lideranças e desenvolver ações para 650 extrativistas. A ideia é planejar coletivamente, fortalecer a governança da rede e aprofundar conhecimentos sobre justiça climática.

Foto: Acervo Rede Cuíra – Jovens Protagonistas dos Manguezais Amazônicos
O objetivo vai além da formação: é garantir que jovens tenham condições de permanecer em seus territórios, valorizando a ancestralidade e criando alternativas para o futuro.
A história de Bruna explica essa urgência. Filha de pescador artesanal, cresceu ouvindo relatos do pai sobre o manguezal e os encontros com o curupira. Como muitas famílias, a dela acreditava que viver do mangue não traria dignidade. “Demorou duas gerações na minha família para alguém chegar na universidade. Hoje, eu volto para a comunidade do meu pai, que é uma Reserva Extrativista, para dizer aos jovens: ‘sim, tem oportunidade aqui’. Sim, o jovem pode ficar. É isso o que estamos mostrando com nossas ações”.
As atividades da Rede Cuíra mostram como a tradição e a inovação caminham juntas. Em São Caetano de Odivelas, mais de 200 pessoas discutiram mudanças climáticas e resgataram a produção de cofos, alternativa sustentável ao plástico. Na Resex Mestre Lucindo, jovens criaram um canteiro de plantas medicinais. Em Tracuateua, uma remaria coletiva percorreu os manguezais, recuperando transporte ancestral de baixo impacto ambiental. No carimbó da Resex Chocoaré Mato Grosso, mais de 100 pessoas celebraram cultura e resistência.
Todas essas experiências integrarão o Vídeo Catálogo de Boas Práticas que a juventude amazônica levará à COP30. Até agora, o projeto alcançou 584 pessoas diretamente e 1.168 indiretamente, em 21 comunidades.
Multiplicação de recursos e sonhos

Foto: Acervo Rede Cuíra – Jovens Protagonistas dos Manguezais Amazônicos
O diferencial do Raízes, com o edital Comunidades Tradicionais Lutando por Justiça Climática – 2024 foi garantir recursos flexíveis, adaptados à realidade local. “A forma como os recursos são implementados no território faz toda a diferença”, explica Bruna. “Isso significa poder comprar o peixe para o encontro, levantar um telhado de palha para o barracão ou garantir que a comida servida seja tradicional”. Algo que parece simples, mas faz toda a diferença para a identidade e coesão de cada localidade.
Essa flexibilidade, diz Bruna, multiplica não apenas os recursos, mas também os sonhos: “A gente continua pescando lideranças. A cada encontro, a cada atividade, nasce uma nova juventude engajada. E isso também não está escrito como atividade do projeto. Mas a gente faz e é o que sustenta o futuro”.
Para Bruna, escrever e planejar um projeto para a organização vai muito além de conseguir recursos. “A gente não escreve projetos, a gente escreve os nossos sonhos. Às vezes precisamos parcelar um sonho entre o Fundo Brasil e outros apoios, mas o sonho é o mesmo: ter dignidade, proteger nossos territórios, garantir um rio limpo para brincar, peixe para comer e ser feliz”, afirma.
No litoral do Pará, a “cuíra”, essa vontade imensa de agir, se transformou em Rede. Uma rede que resgata raízes, multiplica recursos e garante que os manguezais amazônicos continuem de pé, preservados e vivos. “Investir na juventude é o que mantém a floresta em pé. A juventude conecta gerações, incentiva o amanhã e valoriza as experiências de quem veio antes”, conclui Bruna.