
Foto: Acervo AMTCOB
No cerrado nordestino, há 345 km de Teresina, próximo das nascentes do Rio Parnaíba, as folhas longas e arqueadas das palmeiras de babaçu protegem o solo da terra vermelha, abrigam a mata, alimentam os rios e sustentam a vida de gerações de mulheres quebradeiras.
A árvore esguia e de raízes profundas, é abrigo, alimento, segurança e, para as quebradeiras de coco, um símbolo de luta por direitos. “A gente diz que ela é nossa mãe. O babaçu é nossa herança, é quem somos, é nosso alimento, nossa profissão. A palmeira protege a gente, protege o território e a gente protege a ela”, disse Klésia Lima, que se considera quebradeira desde a barriga da mãe.
Em Parnaíba, no Piauí, onde essas árvores longas desenham a paisagem, as quebradeiras de coco nascem guardiãs da floresta e de seu fruto sagrado. Nascem também herdeiras de uma luta que atravessa décadas.

Foto: Acervo AMTCOB
As mulheres e as palmeiras são ameaçadas diariamente pelo avanço do agronegócio nos territórios de babaçuais, cercados por atividades de monocultura, com uso constante de agrotóxicos.
Ainda enfrentam fazendeiros, seus capangas, suas cercas e, em muitos casos, a violência de gênero para deslegitimar o saber tradicional e a força feminina. “Enfrentamos ameaça o tempo todo, como o cercamento do território por fazendeiros e grileiros e o avanço do agronegócio. Homens, que não aceitam as mulheres como protagonistas de causas importantes”.
Cada árvore de babaçu que um fazendeiro derruba, é um ataque ao modo de vida das quebradeiras. “A gente entende que lutar pelo babaçu é lutar pela vida, lutar pelo território, é defender a nossa identidade, é defender os direitos das mulheres”, enfatiza a quebradeira.
As dificuldades impostas, para manter viva a prática ancestral, levaram Klésia e outras 120 quebradeiras da região a se uniram e fundarem a Associação das Mulheres Quebradeiras de Coco de Babaçu do Baixo Parnaíba em 2004. A sede fica no município de Esperantina, no norte do estado. “Nosso objetivo é promover a organização das mulheres, para que conquistem seus direitos enquanto cidadãs. Nós desenvolvemos ações para conscientização da preservação dos recursos naturais e encaminhar denúncias de crimes contra o meio ambiente e contra a mulher”.
Mesmo com os desafios diários, a associação permitiu que elas se tornassem mais do que trabalhadoras rurais: viraram lideranças, multiplicadoras de saberes, gestoras da floresta viva.
Elas recebem apoio do Fundo Brasil de Direitos Humanos, no edital Comunidades Tradicionais Lutando por Justiça Climática, iniciativa do Raízes – Fundo de Justiça Climática para Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais, criado pelo Fundo Brasil, que reconhece e apoia aquelas e aqueles que estão na linha de frente da defesa e promoção dos direitos humanos, socioambientais e da justiça climática. “Com esse projeto, a gente quer fortalecer a luta pelo livre acesso aos babaçuais e pela valorização dos modos de vida tradicionais nos territórios do norte e sul do Piauí. Contamos com esses recursos para garantir a formação, a renda, o protagonismo das mulheres de todas as idades e a proteção ambiental”, conta Klésia.
O Babaçu e as quebradeiras são uma luta só
Em todo o Piauí existem mais de 10 mil quebradeiras de coco. Elas adentram as matas com cofos artesanais geralmente feitos de babaçu, onde recolhem os frutos. Sentadas no solo, ao som de cantigas, iniciam o processo de extração artesanal da amêndoa. Klésia explica que, da palmeira do babaçu, tudo é aproveitado pelas quebradeiras. “Quando a gente diz que do babaçu, nada se perde, tudo gera novos produtos, não estamos exagerando. A gente usa a palha para fazer cestos, as folhas para tetos de casa, a casca vira carvão, até o caule vira adubo”.

Foto: Acervo AMTCOB
Do fruto marrom, pequeno e de casco duro, brota muita vida. “A gente faz azeite, óleo, sabão, creme, leite, ração, bolo, biscoito, sorvetes e muito mais”. As quebradeiras criaram, ao longo do tempo, uma cadeia produtiva e sustentável com cerca de 50 subprodutos a partir do coco do babaçu. “Olha quanta riqueza existe em uma fruta tão pequena. Por isso, para nós, ele é o bem mais valioso”. O babaçu tem em torno de 10 centímetros.
Além de sustento, o babaçu é identidade. E por isso, a resistência das mulheres nos babaçuais é também luta pelo território, água, floresta e vida. Muitas dessas palmeiras estão em terras privadas, onde fazendeiros impõem restrições. “Eles colocam cercas até elétricas, em torno das áreas onde estão essas árvores para nos impedir de coletar do coco”.
Como forma de impedir a livre circulação das quebradeiras em suas terras, muitos criadores de gado também transformam babaçuais em áreas em pastos. “Isso chega a ser criminoso. Devastam toda a natureza e destroem, enquanto nós queremos preservar e cuidar”, reforça a representante da associação.
Elas conhecem o tempo do fruto. O cacho com os cocos leva 9 meses para cair. E, para respeitar esse processo, a quebra do coco é manual. “O uso das máquinas pode acelerar esse ciclo e isso prejudicaria nossa relação sustentável com os babaçuais”.
Klésia ressalta que é por isso que elas insistem em ficar, em replantar, em ensinar às jovens o valor do babaçu. “Queremos que essa tradição tão importante não acabe. Queremos que nossas meninas mais jovens possam viver no território com uma vida digna, a partir do babaçu”.
sxA Associação das Quebradeiras de Coco do Baixo Parnaíba faz parte do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB), que apoia o trabalho e as ações de mais de 300 mil quebradeiras de todo o norte e nordeste.
Como principal fruto coletivo, a luta das integrantes do MIQCB virou lei. Em 2022 foi aprovada a Lei Babaçu Livre. Um marco legal que garante o acesso das comunidades tradicionais aos babaçuais em áreas públicas e privadas, fruto de anos de mobilização em parceria. Ela também proíbe a derrubada de palmeiras.
Além do livre acesso aos babaçuais, a lei inclui recomendações para o cuidado com as “mães palmeiras”, como a proibição do uso de agrotóxicos nos babaçuais ou outros danos, como corte do cacho, derrubadas desordenadas, queimadas ou cultivos de plantações que tragam algum prejuízo para o desenvolvimento.
O babaçu que se fortalece com parcerias
O desafio ainda é grande para implementar, de fato, a Lei do Babaçu Livre. Mas elas seguem organizadas em defesa da produção agroecológica e do meio ambiente. “A gente não vai desistir de combater o avanço do agronegócio e resistir contra as cercas que tentam nos limitar”.

Foto: Acervo AMTCOB
Com o apoio do Fundo Brasil de Direitos Humanos, a Associação das Mulheres Quebradeiras de Coco de Babaçu do Baixo Parnaíba já realizou formações para defensoras de direitos humanos, capacitação de lideranças, oficinas sobre produtos do babaçu, debates para ampliar a consciência sobre direitos e painéis sobre Justiça Climática e os efeitos das mudanças do clima na região.
Mais de 160 mulheres ribeirinhas, indígenas e quilombolas participaram das ações. Cerca de 450 foram impactadas indiretamente nos municípios de quebradeiras de coco babaçu nos municípios de São João do Arraial, Luzilândia, Madeiro, Joca Marques, Esperantina, morro do Chapéu, Antônio Almeida, Elizeu Martins e Cristino Castro, situados no norte e sul do estado do Piauí.
“A parceria com o Fundo Brasil tem feito a diferença na vida das mulheres. Com as formações, passamos a nos enxergar como sujeitas de direito, a nos reconhecer como quebradeiras com orgulho e potência. Estamos mais fortalecidas, preparadas e conscientes para defender o babaçu e os nossos direitos”, finaliza Klésia Lima.