Em um cenário político atravessado por mudanças que impactam a atuação da sociedade civil no Brasil, a Rede de Filantropia Para a Justiça Social lança a publicação “Debates e Reflexões sobre a Filantropia no Brasil”. Com nove artigos escritos por autoras e autores com atuação nacional e internacional neste campo, a publicação analisa o cenário atual da filantropia brasileira, seus avanços e desafios.
O Fundo Brasil de Direitos Humanos é uma das 11 organizações que compõem a Rede de Filantropia para a Justiça Social.
A publicação tem como editoras Ana Valéria Araújo, superintendente do Fundo Brasil e autora do artigo Filantropia no Brasil: os financiadores podem desempenhar um papel mais substancial?textos Filantropia no Brasil: obstáculos, desafios e oportunidades e A Rede de Filantropia para a Justiça Social: um ator estratégico em apoio à sociedade civil no Brasil.
A editora da versão em inglês é Caroline Hartnell, que editou durante 18 anos a revista Alliance, especializada em filantropia.
Confira a seguir trechos dos artigos que compõem a publicação. A íntegra pode ser baixada clicando aqui.
Filantropia no Brasil: os financiadores podem desempenhar um papel mais substancial?, por Ana Valéria Araújo
“(…) o setor filantrópico brasileiro ainda não conseguiu, na visão de muitas pessoas, atingir seu pleno potencial. Não restam dúvidas sobre o crescimento do setor, mas ele ainda está aquém do crescimento das riquezas do país. Embora já seja possível testemunhar um considerável progresso na promoção da cultura de doação no país, o debate sobre a relevância da filantropia para a justiça social ainda é incipiente, e seu papel não é bem compreendido.”
“A falta de apoio institucional a questões relacionadas a direitos reflete o que ocorre em outras partes do mundo, em que causas progressistas como direitos humanos, questões de gênero e fundiárias são enfrentadas por pequenas minorias. Assim, fundos de justiça social e um punhado de fundações comunitárias fornecem financiamento crucial para ONGs, organizações de base, movimentos sociais e defensores dos direitos humanos no Brasil. Esses são alguns dos desenvolvimentos mais significativos promovidos na filantropia brasileira nos últimos dez anos. A maioria dos recursos necessários para os programas de financiamento de projetos sociais ainda são concedidos por fontes internacionais.”
Brasil, filantropia e desigualdade, por Fernando Rossetti
“(…) Novas organizações têm tendido a agir como as organizações de filantropia corporativa mais estabelecidas, que operam principalmente seus próprios programas, em vez de fazer doações para organizações da sociedade civil. (…) Em geral, o recém-nascido setor da filantropia familiar no Brasil não preencheu, de forma alguma, a lacuna deixada pelas fundações internacionais e organizações humanitárias.
Já faz quase duas décadas que as fundações corporativas vêm buscando alinhamento de seu investimento social privado aos seus negócios. Em geral, isso significa canalizar recursos para áreas de interesse da empresa, como a cadeia de suprimentos.”
“Fazer com que a filantropia brasileira passe da operação ao grantmaking e de um foco em interesses restritos a uma orientação de justiça social tem implicações que vão muito além de alcançar um novo ‘paradigma de doação’ no país. Significa mover estruturas tectônicas de poder e concentração de riqueza que estão em vigor desde a descoberta do Brasil, em 1500.”
Filantropia no Brasil: obstáculos, desafios e oportunidades, por Graciela Hopstein
“Embora o termo filantropia esteja normalmente associado a ações de caridade, o conceito de investimento social é comumente ‘mais aceito’ pela sociedade civil. A noção de filantropia está normalmente associada à doação, enquanto o investimento social ao desenvolvimento de programas e projetos criados e implementados por instituições de filantropia empresarial (…). O conceito de filantropia no Brasil carrega consigo conotações pejorativas, e é por isso que precisamos ‘libertar a filantropia de seu estado de maldição’, recuperando o significado original de ‘humanitarismo, ajuda e amor pelos outros/as’.
“Para Jenny Hodgson, do Global Fund for Community Foundations (GFCF; Fundo global para fundações comunitárias), a filantropia comunitária deve ser entendida como um conjunto de estratégias voltadas para recuperar o poder e a voz de grupos mais amplos que se mobilizam coletivamente em busca de um bem comum maior. Para ela, é importante reconhecer que se trata de uma estratégia baseada no reconhecimento e na valorização do papel das comunidades locais, das suas lideranças e dos seus ativos na promoção de ações coletivas voltadas para alcançar o ‘desenvolvimento durável’.”
A filantropia brasileira vai pular a ‘fase de grantmaking’ e passar diretamente a um modelo de investimento de impacto?, por Jessica Sklair
“A filantropia brasileira ainda precisa adotar integralmente a prática de grantmaking – e, portanto, um papel significativo no apoio às organizações da sociedade civil do país – que constitui a base da atividade filantrópica no Reino Unido e nos EUA. Em vez disso, a maior parte dos recursos de fundações brasileiras é destinada à operação de seus próprios programas (…). Com a atual tendência de investimento de impacto, nos perguntamos: será que a filantropia brasileira está pronta para pular a fase de grantmaking e passar diretamente a um modelo baseado em investimentos, levando o foco para ainda mais longe das organizações da sociedade civil, na direção de empresas sociais como veículo preferido para impulsionar mudanças sociais?”
“Os proponentes do investimento de impacto com quem conversei no Brasil estavam de acordo com essa visão. Entre investidores, gerentes de fundos de impacto e aceleradores de negócios sociais em São Paulo, ouvi um consenso geral de que o investimento de impacto não pode e não deve substituir a filantropia tradicional, pois o negócio social não é o modelo certo para resolver todos os problemas sociais.”
“Não é coincidência que as organizações que estão na vanguarda do movimento para incentivar o grantmaking no Brasil, como os membros da Rede de Filantropia para a Justiça Social, frequentemente trabalham em questões relacionadas aos direitos humanos e à justiça econômica e social – precisamente os tipos de questão que as fundações corporativas avessas ao risco veem como sendo politizadas e sensíveis demais para se envolverem.”
Novos intermediários inovadores contribuem para o cenário da filantropia no Brasil, por Leonardo Letelier e Luiza Serpa
“Para potenciais doadores, intermediários (…) podem fornecer benefícios que neutralizam alguns dos desafios (…): desconfiança e falta de uma conexão mais fácil entre a filantropia e o investimento de impacto.
Desde 2014, o Instituto Phi tem ajudado indivíduos e empresas a encontrar e apoiar projetos que amam. Primeiro, a equipe do Phi identifica a causa preferencial de um potencial doador. Em seguida, eles avaliam projetos nessa área, fazendo uma análise completa de suas organizações e enriquecendo seu banco de dados de ONGs avaliadas. Quando doadores chegam ao Phi com uma causa no coração, o Phi faz a ponte, ou intermediação.
A SITAWI tem uma abordagem diferente – mais parecida com o gerenciamento de fundos – e existe há mais tempo (10 anos), mas tem o mesmo efeito de reduzir as barreiras à doação. A SITAWI cria fundos que, em essência, são fundos direcionados pelos doadores (DAF, Donor Advised Funds), para os quais empresas e famílias contribuem, criando, assim, um orçamento filantrópico a partir do qual eles podem praticar sua filantropia.”
A Rede de Filantropia para a Justiça Social: um ator estratégico de apoio à sociedade civil no Brasil, por Graciela Hopstein
“Por meio de estratégias diversificadas de grantmaking, as organizações membros da Rede promovem o acesso democrático a recursos financeiros em áreas geográficas remotas e ‘periféricas’, envolvendo populações marginalizadas (e frequentemente criminalizadas) no que se refere ao seu acesso a direitos. Juntas, elas têm a capacidade de apoiar causas estratégicas, compreender o que está acontecendo e oferecer respostas rápidas a necessidades urgentes. Apoiar organizações da sociedade civil e movimentos sociais é uma estratégia crucial para fortalecer a sociedade civil brasileira e a democracia.”
“Entre 2000 e 2017 as organizações membros doaram diretamente um total de R$ 146.895.761 (em torno de US$ 41.970.217) para 10.669 ONGs e movimentos sociais no Brasil. Isso mostra quão significativa é a atuação da Rede em termos de alcance e volume dos recursos doados para apoiar iniciativas no campo dos direitos humanos e da justiça social.”
Mensagem ao nosso presidente sobre a filantropia nacional e o papel da sociedade civil na proteção da região amazônica: proteger a Amazônia não é uma ‘conspiração’ da filantropia internacional, por Ana Toni
“Certamente, se eles soubessem mais sobre o setor filantrópico de seu próprio país, entenderiam por que algumas ONGs no Brasil ainda precisam contar com doações internacionais de indivíduos e organizações filantrópicas. No entanto, em vez de acusar ou perder tempo perseguindo organizações internacionais ou de financiamento internacional, Bolsonaro e sua equipe econômica, que são grandes admiradores dos EUA, deveriam usar seu tempo para criar um ambiente econômico e legal mais propício, de forma a poder apoiar um ecossistema filantrópico nacional composto por indivíduos, famílias ricas e empresas que desejam usar seus recursos particulares para financiar ONGs de interesse público e cérebros pensantes. É claro que há dinheiro suficiente no Brasil, e se tivéssemos um ambiente legal mais adequado para apoiar as doações e a filantropia, certamente veríamos mais financiamentos nacionais para as ONGs que lutam por questões ambientais e de direitos humanos na Amazônia.”
A Filantropia no Brasil: oportunidades além do Bolsonaro, por Márcia Kalvon Woods e João Paulo Vergueiro
“A realidade do nosso novo Congresso pode ser vista como uma ameaça ou uma oportunidade, e isso vai depender da forma como trabalharmos. Nosso entendimento é que podemos ter os legisladores como aliados, aprendendo sobre nosso setor e nos ajudando a apresentar propostas que beneficiem e fortaleçam o setor filantrópico como um todo.”
“Esse novo mandato de quatro anos que acaba de começar pode ser a oportunidade de que precisamos para defender a filantropia como uma prioridade política. O governo vai ter que fazer grandes reformas, e é uma oportunidade para acabar com alguns absurdos, como o imposto estadual sobre doações a organizações da sociedade civil.”
‘Ordem e progresso’ e generosidade? A filantropia brasileira resumida em poucas palavras, por William Renaut
“Não podemos esquecer que o Brasil é uma democracia há apenas 30 anos: a Constituição atualmente vigente foi promulgada apenas em 1988, após o fim da ditadura militar. A criação de associações e ONGs no país é recente – 70% tem menos de 30 anos de existência; desta forma, esse setor tem limitações quanto ao seu tamanho e recursos (…). O desafio do setor encontra-se no fato de que, com exceção de universidades e hospitais, 74% das organizações não conta com empregados e apenas 6% tem mais de 10. Em 2009, somente 20% dos membros da Abong (Associação Brasileira de ONGs) apresentavam um orçamento anual maior que um milhão de dólares.”
“A falta de confiança e o complexo contexto legal contribuem, em parte, para que o Brasil esteja em 2018 no 122º lugar no World Giving Index (Índice Mundial de Doações).”
Sobre o Fundo Brasil
É uma organização independente, sem fins lucrativos e que há 13 anos apoia grupos, coletivos, defensoras e defensores dos direitos humanos em todas as regiões do Brasil. A fundação busca meios sustentáveis de destinar recursos às organizações da sociedade civil e promove atividades de formação e articulação entre os grupos apoiados.
Desde 2006, foram mais de R$ 20 milhões doados, 450 projetos apoiados e 10 mil propostas submetidas aos diversos editais públicos lançados.
Sobre a Rede de Filantropia para a Justiça Social
Reúne fundos e fundações comunitárias, organizações doadoras (grantmakers) que apoiam diversas iniciativas nas áreas de justiça social, direitos humanos e cidadania. A maioria dos membros também apoia iniciativas de desenvolvimento, fortalecimento e articulação institucional, e promove atividades de formação, diálogo e debates em diversas áreas e com múltiplos atores.
A Rede foi criada no ano de 2012 como o propósito de promover e diversificar uma cultura filantrópica no Brasil que garanta e amplie os recursos para a justiça social.