Ciro tem 27 anos e em 2013 foi preso na Cinelândia, centro do Rio de Janeiro, junto com outras 39 pessoas que estavam no local para participar de uma manifestação pública.
Todos foram levados para uma delegacia, onde passaram a noite. Sequer se conheciam, mesmo assim foram acusados de formação de quadrilha. Ciro foi para a unidade de Triagem Patrícia Acioli, em São Gonçalo. Colocado numa cela alagada, ficou nu e teve o cabelo raspado.
No dia seguinte, foi solto junto com outras duas pessoas. O restante do grupo foi levado para Bangu, no Complexo de Gericinó. Formado em comunicação social, Ciro dava aulas de francês antes do episódio. A família teve condições financeiras para contratar um advogado. Um professor da universidade em que estudou deu apoio.
Ciro não foi julgado. O processo foi extinto. Quatro dias após a prisão, no entanto, o pai dele morreu vítima de um enfarte. O jovem atribui o caso, pelo menos em parte, à sua prisão.
Para Marisa, 59 anos, a prisão também teve consequências tristes. Ela trabalhava como assessora na Prefeitura de Teresópolis e restauradora de objetos antigos quando foi vítima de uma denúncia anônima sobre um revólver escondido em seu carro.
Era uma arma antiga. Marisa não sabe de onde o revólver saiu. Conta nunca ter visto o objeto antes. Mesmo assim, na delegacia, onde passou duas noites, confessou ser a proprietária da arma. Teve medo de a filha ser acusada e presa e de o neto ser levado para o Conselho Tutelar.
Após duas noites na prisão, a restauradora passou a enfrentar depressão e síndrome do pânico. Precisou se submeter a um cateterismo e, após ter a foto publicada em um jornal, perdeu o emprego e abandonou o clube que frequentava por sentir-se excluída.
Marisa foi condenada a 400 horas de serviço comunitário e, por causa de uma confusão burocrática, foi presa novamente, acusada de ser fugitiva da Justiça. Sofreu uma isquemia cardíaca, tortura psicológica e agressões físicas. Pegou sarna, piolho e perdeu unhas do pé.
Os episódios levaram a mulher a precisar de tratamento psiquiátrico. Até hoje enfrenta dificuldades para sair de casa e a relação com a família ficou abalada.
David foi preso aos 18 anos depois que um colega de classe jogou para ele uma “bucha” com 1,9 grama de maconha. Acusado de tráfico de drogas, formação de quadrilha e corrupção de menores, ficou onze meses na unidade de custódia de Japeri, na região metropolitana do Rio. Passou também por Bangu.
Sofreu agressões físicas e enfrentou dificuldades para que a polícia ouvisse sua versão. A mãe penou nos deslocamentos para visitar o filho e também devido à falta de informações sobre os motivos da prisão. Um recurso da Defensoria Pública do Estado do Rio possibilitou a absolvição de Davi em segunda instância nas três acusações. A prisão, no entanto, deixou consequências graves.
O garoto parou de estudar, tem dificuldades para dormir e perdeu amigos. Tem medo de andar na rua e ser preso novamente. Não consegue mais confiar nas pessoas.
As histórias são contadas na publicação “Imparcialidade ou cegueira – um ensaio sobre prisões provisórias e alternativas penais”, produzida pelo Iser (Instituto de Estudos da Religião) em parceria com o Cesec (Centro de Estudos em Segurança e Cidadania).
A publicação faz parte do projeto “Combate às violações de direitos humanos decorrentes dos abusos no regime de prisão provisória no âmbito do sistema de Justiça Criminal brasileiro”, realizado pelo Iser com apoio do Fundo Brasil em parceria com a Fundação OAK por meio da linha especial Justiça Criminal.
As organizações apoiadas combatem as violações de direitos humanos de pessoas encarceradas sob o regime de prisão provisória, aquela sem condenação definitiva, ou seja, antes do trânsito em julgado da sentença.
Hoje no Brasil 41% das pessoas encarceradas (ou 249.668) são presos ou presas provisórios. Isso quer dizer que quatro entre dez pessoas presas não têm condenação. No Rio, em julho de 2016, havia 20.631 presos provisórios do total de 48.262, ou seja, 42,74% não tinham condenação.
As histórias de Ciro, Marisa e David fazem parte dos 12 relatos reunidos pelo Iser para mostrar as consequências da privação de liberdade. De acordo com o estudo, ninguém sai imune.
Entre as consequências estão os maus tratos e o não acesso aos direitos na prisão provisória. “Presos provisórios são tratados no sistema prisional de maneira semelhante aos condenados, tendo em algumas ocasiões menos direitos do que estes”, analisa a publicação. “Pela condição de provisoriedade, muitas vezes não podem usufruir de certos direitos como o estudo, a assistência de saúde, social ou psicológica”.
Outra grave dificuldade é o acesso à defesa. A maioria dos presos brasileiros, segundo o Iser, são clientes das defensorias públicas. No Rio, esse percentual chega a 93,61%. No entanto, nem sempre o defensor que entrevista a pessoa presa é o mesmo que acompanha o processo.
É comum que os detidos não tenham informações suficientes sobre os processos. A linguagem jurídica dificulta o entendimento. Além disso, o nervosismo durante as audiências faz com que seja comum o preso não compreender a medida jurídica que irá cumprir.
As revistas vexatórias e as burocracias para visitação dificultam o acesso de familiares e amigos às unidades prisionais. Humilhações e tortura psicológica são descritas com regularidade.
Outra consequência é a perda da identidade, por meio de atitudes como o corte dos cabelos, a substituição das roupas por uniformes e a identificação no sistema penitenciário por meio de um número.
“Esse processo de desumanização ao qual são submetidos é marcado por uma construção, por parte do sistema, do indivíduo criminoso”, diz o documento do Iser.
A desestabilização nas relações familiares, as dificuldades de recolocação no mercado de trabalho, problemas de saúde, intensificação do uso de álcool e outras drogas, envolvimento com pessoas comprometidas com crimes violentos são fragilidades que se agravam nas passagens pelo sistema prisional.
Das 12 pessoas que contaram suas histórias para a publicação do Iser, três foram absolvidas, sete receberam penas alternativas ou prestação de serviços comunitários, uma teve o processo extinto e outra aguarda julgamento.
“Qual é a justificativa para essas pessoas terem ficado reclusas em boa parte do tempo”?, questiona a organização.
Iser
O Iser é uma organização dedicada à causa dos direitos humanos e da democracia. Tem o objetivo de contribuir para a discussão e formulação de políticas públicas. Atualmente, suas temáticas de interesse e de atuação são: religião, meio-ambiente, juventude, sociedade civil, violência, gênero e mediação de conflitos. O sistema prisional é uma temática de alta relevância na atuação da organização.
Fundo Brasil
O Fundo Brasil é uma fundação independente, sem fins lucrativos, que tem a proposta inovadora de construir mecanismos sustentáveis para destinar recursos a defensores e defensoras de direitos humanos em todas as regiões do pais.
A fundação atua como uma ponte, um elo de ligação entre organizações locais e potenciais doadores de recursos.
Em dez anos de atuação, a fundação já destinou R$ 12 milhões a cerca de 300 projetos em todas as regiões do país. Além da doação de recursos, os projetos selecionados são apoiados por meio de atividades de formação e visitas de monitoramento que fortalecem as organizações de direitos humanos.
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